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segunda-feira, março 17, 2014

INVENTÁRIO DAS MINHAS INVEJAS

Renivaldo Costa - Jornalista

Inveja infinita de quem toca um sax alto durante o ano, e no Carnaval toca em alguma pequena orquestra somente para dar uma força à turma;
Inveja de certos homens que ficam sentados uma manhã inteira, olhando para o tempo, uma tarde inteira, olhando para o vento, e chegam à noite com os olhos ainda virgens;
Inveja de quem sabe contar piadas, como o Paulinho Lopes, mas não passa a noite enchendo os amigos de piadas;

Inveja de quem não tem medo de altura;
Inveja de quem ganha de presente cadernos de papel reciclado e canetas bico-de-pena;
Inveja de quem tem um Fusca 68 azul e nunca o bateu em um Honda Civic;
Inveja de todos os jogadores de futebol que já entraram no Remo e foram saudados pela torcida do Payssandu, em qualquer época da humanidade;
Inveja de quem nunca foi dono de bar;
Inveja total de quem chuta com as duas pernas e sabe cabecear bem;
Inveja de quem sabe usar a linguagem dos sinais e usa, sem ser surdo-mudo;
Inveja de quem joga bem dominó e faz um lá e lô no final decisivo do jogo;
Inveja de quem assistiu a um show ao vivo da Elis Regina;
Inveja de quem tem uma casa própria, embora miúda;
Mais inveja ainda de quem tem uma casa própria no Laguinho;
Inveja de quem sabe recitar os próprios poemas para os amigos, e, especialmente, para a mulher que ama;
Inveja de quem recebeu um adiantamento da editora para escrever seu próximo livro, e vai passar seis meses só no fulozô;
Inveja de quem está viajando hoje para Paris e depois Itália;
Inveja de todos os textos de Fernando Canto, o maior escritor do Norte, que escreveu "O bálsamo" e "Equino(cio)";
Inveja de quem sabe dançar bem e tem disposição para dançar bem, como Caroline;
Inveja de quem tem um programa de rádio, de madrugada, coloca músicas lindas e lê as cartas enviadas pelos desconhecidos;
Inveja de quem conheceu a América Central numa longa viagem, cheia de amigos;
Inveja de quem toma um porre e se lembra de guardar os óculos num lugar seguro;
Inveja de quem não fica nervoso para falar em público;
Inveja de quem passou a tarde hoje num bar, conversando com seu melhor amigo ou amiga;
Inveja de quem anota na agenda a data do aniversário dos melhores amigos, e lembra de telefonar no dia certo;
Inveja de quem tem disposição para fazer seu próprio aniversário;
Inveja de quem tem paciência para escolher e comprar roupas;
Inveja de quem toca "Carinhoso" no sax ou em qualquer instrumento;
Inveja de quem sabe cantar uma música de Lupicínio Rodrigues bem afinado;
Inveja de quem sabe o nome das plantas e flores, como o saudoso Sacaca;
Inveja de quem conheceu Alcy Araújo, Carlos Cordeiro Gomes e Hélio Pennafort, mas no Bar do Abreu;
Inveja de quem tem uma máquina fotográfica manual e tira fotos dos amigos, crianças e velhos há muitos anos;
Inveja de Silvio Leopoldo, pelo "Evocação a Macapá";
Inveja de quem salta de pára-quedas e fica gritando lá do céu um monte de palavrões;
Inveja de quem foi feliz na infância;
Inveja de quem encontrou seu amor tranquilo;
Inveja de quem conviveu muito tempo com os avós;
Inveja de quem sabe recitar os poemas de Manuel Bandeira;
Inveja de quem tomou um porre com Antônio Maria;
Inveja de quem sabe o nome de todas as pontes da BR-156;
Inveja de quem vai passar o sábado inteiro numa rede, lendo algo maravilhoso;
Invejas, simplesmente algumas invejas.


 

domingo, março 09, 2014

DE DOSE EM DOSE


J. R. Guzzo

O tribunal mais alto do país resolve que um crime foi cometido e, passado algum tempo, decide que esse mesmo crime não é mais crime – coisa incompreensível, no entendimento comum, que se leva em conta que o tal tribunal existe justamente para dar sentenças que não podem mais ser mudadas. Mas no Brasil não é assim que funciona, e por via dessa magica três estrelas do mensalão, recém condenados pelo Supremo Tribunal Federal por crime de quadrilha, não cometeram crime de quadrilha.
Nesse meio tempo, o governo Dilma Rousseff substituiu dois ministros que acabavam de se aposentar por dois nomes exatamente a seu gosto, ficou com a maioria de 6 a 5 no plenário e o que valia passou a não valer mais. Desanimado? Talvez não seja o caso; não compensa comprar por 100 um aborrecimento que não vale 10. No fundo, esse ultimo show encenado em picadeiro do STF não quer dizer lá grande coisa. Problema, mesmo, é a lata de formicida Tatu que o governo parece interessado em nos servir, em doses bem calculadas, no futuro aí à frente.
Dirceu &cia. foram absolvidos do crime de quadrilha? Sim, foram – mas e daí? Continuam condenados por corrupção ativa: não é um certificado de boa conduta. Sim, o PT festeja – mas festeja o quê? Não mudou nada no que realmente tem importância: três dos maiores heróis da Era lula estão liquidados para a vida politica brasileira, pelo menos no grau de grandeza que julgavam merecer. Seu futuro morreu. Que diferença faz, então, saber se vão cumprir x ou y meses a mais de sua pena, ou onde estão dormindo? Se fosse mantida a condenação, não iriam ficar muito mais tempo no xadrez, levando em conta que todos os criminosos brasileiros, por mais selvagens que sejam, têm direito a cumprir só um sexto da pena – mesmo gente como o casal de São Paulo que matou a própria filha de 5 anos, jogada do alto do seu prédio. De mais a mais, daqui a pouco todos eles começarão a ficar velhos, o que é castigo suficiente para qualquer ser humano. A velhice, como é bem sabido, não inspira muita pena, sem simpatia – e, uma vez que se entra nela, não é possível voltar.
O verdadeiro perigo armado contra o Brasil se chama Supremo Tribunal Federal, e o perverso sistema pelo qual os seus membros são nomeados.
Para simplificar: o STF deixou de ser uma corte de justiça. Hoje é um amontoado de onze cidadãos divididos em grupinhos, cabalas e intrigas, com um partido pró governo e outro que se junta ou separa ao sabor das circunstancias. Há gangues inimigas – onde, justamente, deveria haver esforço comum para a prestação de justiça. Suas Excelências têm, é certo, a soma daqueles pequenos talentos que servem de combustível para subir na vida, mas é só o que têm. O senso moral desapareceu na atuação dos juízes. Como pode funcionar um tribunal supremo onde o fator que determina as decisões não é a lei, mas o ódio individual entre ministros e a obediência a doutrina politicas? A situação já estaria suficientemente ruim se ficasse assim como está. Mas pode ficar pior ainda, dependendo do sucesso que tiverem no futuro próximo as forças que têm o sonho de rebaixar o STF à condição de repartição publica, ocupada por despachantes encarregados de executar ordens do governo.
Durante toda a vigência do Ato Institucional N 5, a ditadura militar garantiu o controle sobre o STF através das “aposentadorias compulsórias” dos ministros que não obedeciam as suas ordens. Para que o trabalho de fechar o Supremo, se ele podia ser controlado pela forca armada?
Hoje é possível obter o mesmo resultado, sem a necessidade de usar a tropa  – basta, com um pouco de paciência, ir colocando nas próximas vagas ministros como Ricardo Lewandowski ou Luiz Roberto Barroso, Teori Zavascki ou José Dias Toffoli. Mas os novos juízes não teriam que comprovar alto saber jurídico? Que piada. Toffoli, advogado do PT, foi nomeado ministro do STF depois de levar bomba em dois concursos para juiz de direito – provavelmente, um caso único no sistema judiciário mundial. Os demais, com ligeiras diferenças que não alteram o produto, são nulidades. Quando se aceita, como hoje, a ideia de que não é preciso ter princípios nem valores morais na atividade de governar, tudo começa a valer- e o resultado desse vale-tudo são aberrações como a “democracia da Venezuela”, que tanto encanta Lula, Dilma e o PT.
Destruir o Supremo é destruir a pátria. País sem Supremo é país sem lei, e país sem lei não é mais nada – apenas um ajuntamento de gente submetida à vontade do mais forte.