Não
serei nada enquanto não souber sobre mim mesmo o que é alma o que é espírito.
Da minh’alma nada sei, nem a sinto, rogo por ela, mas não pressinto que disso
tenha consequência. Já meu espírito, esse que me lembra diariamente de que não
há nem houve minguem a quem eu ame mais do que a mim próprio, conheço bem.
Ele
e eu, quem sabe eu e ele somos platônicos: realidade impalpável, amorfa,
incolor, quando muito guia da minha alma. Mas é um espírito como o é meu corpo que
se modifica para envelhecer. Não conheço a minh’alma, já disse, mas as almas em
geral são, bem sei, imutáveis, eternas, divinas. Rivalizam com o corpo, pois
desse não absorve qualquer prejuízo.
Assim,
meu guia é o espírito e minh’alma a minha ignorância. Entre eles está meu
coração, aí sim um poço carmim pelo sofrimento que dei causa, pelo vazio da
minha memória. Foi ele que me fez viver uma única vida, cheia de ilusões.
Coração
pingando sangue causou-me perdas – desculpa-me por isso. Fez-me retirado de
tudo, a cuidar só do meu espírito, a descuidar dos meios de aperfeiçoar-me e da
astúcia em livrar-me de instintos perversos.
Pode
ter se estabelecido em mim, aí sim, uma confiança traiçoeira por sem limites,
imensa. Eu, escravo então do meu espírito, da minh’alma, do meu coração, da
minha confiança. Que mais me restaria que vagar solitário e sem crédito por aí?
Alivia-me
que seja dono de uma ilha, aliás, ilhinha, aonde pude gemer como o vento de lá,
lutar com os meus fantasmas – que minha imperatriz dizia serem meu espírito -,
e pude sonhar para não deixar fugir de mim essa única propriedade: meu
espírito.
Pior
desse deleite insular é que havia ali acorrentados eu e meu espírito, ou se
quiserem mais me mortificar: meu espírito e eu.
A
doença, a fraqueza, a paixão, a distancia, os amigos que a mesma doença matou,
as ameaças que a alma que julgo ser a minha faz a cada pecado grave que cometo,
a solidão, o amor, tudo, tudo mesmo suportaria se pelo menos vez por outra
pudesse contemplar-me por inteiro: espírito, coração, alma.
Pouco,
ou melhor, nada me importaria com esse nefasto mundo. Mas, cadê espaço em minha
própria prisão?

Assim
sem esperança, embora cavalgue meu espírito, não quero voltar ao mar – não que
não possa, não quero. Minha ilhinha é cercada de praias e nelas que vou morrer.
Minha
imperatriz, porque ali sou imperador, é sem igual. Só no espelho há quem se lhe
compare. Outro dia a vi tão bela que cheguei imaginar fosse a minha alma –
nunca quis amar outra igual.
Minha
ilhinha é sempre cheia de brisas, de sons, de cheiros, dos ais, dos bocejos da
imperatriz, e dos meus livros. Sem isso não disporia de espírito nenhum.
Nesse
mundo imperial da imperatriz e meu, a única possibilidade é tirar de dentro de
nós lembranças de grandes ideias que um dia tivemos. É aí que meus livros são o
meu próprio espírito. Quantos infinitos dias deitado na areia morna das minhas
praias presumi nuvens chovendo enfeites para a ilhinha, um mundinho do qual não
queria sair.
E
nem tinha por que: belíssima imperatriz sem ouro e rubis, celeiro sempre cheio,
plantas arcadas de frutos, tempo estacionado na primavera....sombra e água
fresca.
No
entanto, também é do Senhor a minh’alma e é possível que se ire por amofina-lo com
minha doença. Suportai-me Senhor, é a única prece do meu espírito.
Espírito
e alma que são complementos meus sede limpos perante os céus, não escondam os
meus desgostos que por demasiados fazem-me esse corpo vazio.
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