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quinta-feira, abril 21, 2016

O GOLPE.

A política tem seus encantos, um deles é se tornar incompreensível sempre mais que se esforce para entende-la. Domingo passado estavam em Brasília, no plenário da Câmara dos Deputados, a quase totalidade dos parlamentares da casa – quinhentos e onze deputados. Era domingo!
No decorrer dos anos lá estão alguns poucos deles apenas na terça e quarta-feira. Não há trabalho coletivo na segunda, quinta e sexta-feira. Quase não há resultados quando na terça e quarta-feira reúne-se o parlamento brasileiro. Mas, estiveram lá sábado e domingo, quase todos.
Contudo, não está aí o que não se compreende da política nacional e sim na matreirice dos políticos, o que foge ao alcance das mentes comuns.
Antes da votação que motivou a presença da maioria dos deputados em Brasília sites afins foram criados, um deles o vemprarua.com. Sobre o impeachment da presidente ali se podia acompanhar a posição pró, contra ou de indecisão de cada parlamentar do Congresso Nacional.
Os senadores pelo Amapá João Capiberibe e Randolf Rodrigues apareciam como contrários ao impeachment da presidente Dilma, o senador Davi Alcolumbre pró.
Vencida a etapa na Câmara dos Deputados resultou vencedora a tese do prosseguimento do processo, mas resultou também a tese de nova eleição já em outubro de 2016. Defendendo a tese e lhe dando originalidade apenas senadores afins do socialismo: João Capiberibe (PSB-AP), Cristovam Buarque (PPS-DF), Lídice da Mata (PSN-BA), Rondolf Rodrigues (Rede-AP), Paulo Paim (PT-RS), Antono Carlos Valadares (PSB-SE), Machado Reguffe (sem partido-DF) e Walter Pinheiro (sem partido-BA).
“Estamos querendo que, qualquer que seja a decisão do Senado, que o povo brasileiro seja chamado para dizer quem quer que conduza o destino da nação”.
“A proposta que estamos apresentando não interfere no ritimo do impeachment. O rito vai transcorrer o seu calendário” – disse o senador João Capiberibe (PSB-AP).
Na terça-feira seguinte ao domingo histórico, já no senado, a senadora Lidice da Mata declarou em plenário, como também o fez o próprio senador Capiberibe, que bem antes de se iniciar o tal processo de impeachment já se tinha formatado a proposta de nova eleição presidencial.
Antes da tramitação no Senado a voz corrente dos “dilmistas” asseverava que o processo era golpista, que não se admitia botar para fora a presidente eleita por cinquenta e cinco milhões de eleitores. Esses senadores apareciam como aderentes à tese que chamam de golpe.
Ora, onde anda a minha capacidade de entender a política? Agora esses mesmos senadores discursam na Tribuna do Senado afirmando que a proposta que estão apresentando não interfere nem no rito nem no ritmo do impeachment. Apenas empareda a presidente, faltou-lhes dizer.
Nem publicaria essas mal traçadas linhas, mas como perder a oportunidade de afirmar que pensam como eu um ministro e um ex presidente? O ministro Jose Eduardo Cardoso disse algo muito importante implícito ao processo de impeachment em curso no Brasil: “as pessoas já não se preocupam com o que dizem ou pensam os militares; agora se preocupam com o que dizem ou pensam os juízes”. O ex presidente Lula disse “não ver com bons olhos a ideia encampada por alguns membros do PT de que o partido poderia abraçar a campanha de “Diretas Já” antes mesmo do fim do julgamento do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff no Senado”.
Disseram o que eu já tinha dito...


segunda-feira, abril 18, 2016

TCHAU QUERIDA

c-bernardo2012@bol.com.br 
Enquanto os deputados federais votam o encaminhamento ou não do seu processo de impeachment ao Senado, lembrei da ampla coligação de forças que deu suporte à eleição da presidente Dilma Rousseff em 2014.
Nesse momento a votação é penosa sem clara sinalização de resultado para cá ou para lá. A política é isso em qualquer lugar: disputa de votos seja por que motivo for, justo ou injusto.
Mas já era tempo de melhores dias no cenário político nacional, sem que tanto precisasse; bastante que se compreendesse o velho ditado popular: duas metades de cavalo não fazem um.
As coligações partidárias que dão vida às campanhas eleitorais, nada mais são que um arranjo dos políticos em fazer cavalo juntando metades de zebra, jumento, mula, poney. 
Antes, bem lá atrás, as coligações partidárias se faziam com dois partidos (duas metades de cavalo), mas de uns anos para cá só parecem legitimas se fundadas em pelo menos seis partidos “unidos” por uma ata. Mas não vão além da festa da posse – não foi dias atrás que se formou no Brasil a coligação “COM A FORÇA DO POVO”: PT / PMDB / PSD / PP / PR / PROS / PDT / PC do B / PRB)?
Vivemos a modernidade também na política, tempo de facilidade para juntar partidos, formar mesas, mesclar programas, escrever atas. Partidos, consciências e convicções ideológicas estão disponíveis no mercado eleitoral, a favorece-los ai estão os recursos da computação: Ctrl C e Ctrl V. Qualquer errata harmoniza os programas dos partidos participantes, copiando e colando faz-se o necessário.
O que não se pode ainda imprimir no universo desses programas improvisados para fins de coligação é a questão moral. Essa coisa, esse detalhe, fica como a história da vaca e do boi: uma é sagrada outro é churrasco.
Junta-se partidos ao redor do quociente eleitoral, quase sempre por decisão de apenas um líder político, um vendo no outro a metade de si próprio – não há má fé, deslealdade, traição porque um partido se tornou o outro.
Parece difícil decifrar esse jogo político, que aliás, não se pode negar, é de uma engenhosidade espantosa – convence o eleitor e a Justiça Eleitoral. Mas não demora descobre-se a rasura na ata original, pois faltou sobre e abaixo de suas linhas imprimir a personalidade dos titulares da coligação.
Às vezes tarde outras vezes mais cedo que o esperado desfaz-se o que pensava ser uma coligação para governar, às vezes dói às vezes fere a ferro em brasa a alma do eleito. Acaba e acontecer com a presidente Dilma Rousseff do Brasil, início de 2016, em apenas um ano e três meses de empossada foi recomendada para a deposição quase só em relação aos partidos que sobraram da coligação que a elegeu em 2014.
E pior, encaminha-se a Dilma para o cadafalso, impiedosamente saudada por alguns desses partidos: tchau querida.        

terça-feira, abril 12, 2016

ALMAS

c-bernardo2012@bol.com.br
Algo está errado com a alma, que tinha que ser como sombra – uma pessoa sua sombra, a minha, a sua, a dele, a dela. Não podia andar ao passado, ao futuro, deixando-nos um presente vazio ferindo-nos com coisas vãs. Foi mesmo no Éden que se perdeu a alma una a cada um, deu-se quando Adão caiu no conto do vigário da serpente. Saiu de si uma alma para Eva outra para a cobra.
Escribas lá da pedra lascada andaram a dizer que o homem não é um, carrega Caim e Abel em si mesmo, vive em luta de fé e contra fé, moeda cara e coroa, bom e ruim, deus e demônio, diz-se inclusive que todo homem tem seu lado mulher. Sei lá, certo mesmo é que o homem que vê os dois lados de uma questão é um homem que não vê absolutamente nada.
Ando assim ultimamente, sem saber onde estou.
Lá atrás na adolescência ou na juventude deixei minha alma girar como quisesse, como pudesse. Fui até a paixão de querer ver nos olhos de uma garota luz que nunca me clareou. Aí, outra vez, um homem e duas almas: sonho e paixão, depois segredo e saudade.
Mas não se livra, ninguém, da estrada por onde corre e prospera a dubiedade da alma andarilha que com tanta facilidade vai do passado ao futuro. Essa estrada que nem com desfaçatez se ignora é a saudade, qual seja: apego a um passado que interfere no presente.
Não é estrada boa nem ruim, nem reta nem tortuosa, uma vez que ora é felicidade retardada, ora é lembrança que machuca, ora é reconciliação mental, ora, maioria das vezes, é amor que nunca vai embora. Assim, claro como água limpa, a alma posta no passado ou no futuro deixa-nos perambulando num tempo presente repleto de ausência.
Ainda bem que chegamos ao fim dessa estrada, mesmo sem saber  onde estamos, acabou-se o desconforto de intensas saudades: o face book resolveu quase todas as maiores expectativas de reencontros.
Quanto a mim, pôs-me a alma como a sombra que me deve plagiar os mínimos movimentos à qualquer luz, sem nunca se afastar de mim mais que o dobro das minhas dimensões, nem desaparecer com a luz a pino.
Acompanhado e não apenas guiado pela alma sei sentir falta de quem deixei no passado, sei trazer de volta sons, imagens e até cheiros. Sei voltar temporariamente ao passado e sei resistir a chegadinhas ao futuro.
Vê como tem sim algo errado com a alma? Só com ela voltamos no tempo, suportamos bem o presente, damos chegadinhas no futuro.     

 

 






domingo, abril 10, 2016

UMA SÓ PESSOA.


Na década de 70, por volta do 1978, conheci em Macapá uma mulher muito bonita. No início era de ouvir falar e de vê-la aqui e ali cuidando da sua rotina de dona de casa. Depois, função de suas relações com a minha esposa, passei a uma convivência esparsa e equidistante, período em que conheci também o seu esposo - ela e ele eram bonitos.
Tempos depois tiveram uma filha, pouco vista, a criança ficou para a família e seus íntimos, eu mesmo não me lembro tê-la visto até já grandinha. A menina revelou-se portadora de Síndrome de Down, na época o preconceito batia duro nas crianças portadoras e em suas famílias – nem à escola iam. Já tínhamos a APAE Macapá.
A casa onde moravam era central, dela a correio, a banco, à igreja, a supermercado, à praça, a médico, era um pulo. De muito boa estrutura, ampla, arejada e com amplo jardim frontal, não tinha muros e sim rico gradeado. Muito raramente passando à rua via-se a menina ao quintal, como não era ainda a época dos carros com película escurecendo os vidros aí sim estava ela ao banco traseiro.
Ia a menina crescendo e a mãe, ainda bela mulher, envelhecendo, em cujos cabelos vinham os fios brancos, pintas na pele dorsal das mãos, aos olhos os óculos e roupas antigas mostrando que a vida era outra em mesma mulher.
O marido também envelhecia às pressas, mais raro de ver às ruas mais difícil perceber quanto a vida familiar o modificava. Depois de uns trinta anos que o conhecia, morreu.   
Não imediatamente como que vê-lo morto mãe e filha esperassem, a essas passamos ver e tocar na igreja. Todos os domingos estavam lá para a Missa matinal. A mãe assumiu ares de vida de sacrifícios, traços indesejáveis por todas as mulheres marcavam seu rosto com rugas, sobras de pele balançavam na parte traseira dos braços, as passadas lentas, os cabelos antes produzidos agora apenas penteados cada vez pareciam de prata. Deixava de ser uma mulher bonita nem uma linda mulher, especialmente, aliás não, exclusivamente porque não tinha mais individualidade. Fundiu-se à filha que fundiu-se à mãe, sendo as duas uma só pessoa.
Um dia desses, já depois de quarenta anos, falei à mãe que minha missa com elas por dentro da igreja catedral se transformara numa necessidade de perguntar-me severamente quem sou.!?
Inversamente ao que entendo ou percebo da vida a mãe perdia vigor e massa muscular enquanto a menina já não o era. Ali estava, isso sim, uma vultosa mulher, pesadona, enorme, curiosa e destemida como a mais pura criança.
Hoje é domingo, já tardinha; pela manhã estive com elas. À mãe quase disse que era ainda uma linda mulher, mas não era importante, não significava nada. A menina cismou comigo pela primeira vez, queria saber se eu tinha bombom para lhe dar, não me tocou os bolsos mas não soltava a mão que tomou para si até que respondesse o que queria ouvir.
Domingo que vem trarei, pode cobrar, disse. A mãe apenas comentou: não sabe o que arranjou.    
Não falharei, seria muita mesquinharia diante de um dos viveres mais dignos que em toda minha vida conheci. As duas são uma, mas a mãe não é mais bela...é santa.  




sábado, abril 09, 2016

FAÇA-SE O QUE DIGO.

Para Dany Catunda
Aqui e ali a vida foi ensinando caminhos, especialmente me ensinando o quanto abrir as pernas para a passada segura. Nem pressa nem pachorra...andar para frente, sempre.
E caminhando encontrei pela via virtual a Dany Catunda, pessoa da qual nunca soube alhos e bugalhos. Sobre ela só posso dizer pouco mais, que os canceres meu e dela deram causa a que nos gostássemos um pouco e nos admirássemos bastante.
Quando a “descobri” reconheci no semblante que a fotografia mostrava, uma pessoa bonita, de raro sorriso suave e belo, porém acuada pelo pavor que o câncer a ninguém nega.  
Eu já estava doente e podia contar a ela das experiências que me haviam trazido resultados aliviantes para as tantas situações aflitivas que o câncer e as situações de tratamento trazem, que a uns esmaga a outros estimula a mais lutar. Gostei da Dany, ela pedia ajuda com alegria e confiança contagiantes - a última grande conversa que tivemos colocou entre nós a terrível leucopenia. 
Depois, também virtual, conheci a Dany mãe de corpo inteiro, mais bela mulher ainda. E logo a vi cheia de amizades analógicas, com palavras e atitudes. Desde aí quis dizer-lhe da minha devoção ao deus Hypnos, com toda sua “corte” de irmãos igualmente deuses. Ele, Hypnos, deus da sonolência. Nunca do cansaço. Nunca da fatiga.
Muitas vezes desejei cair em sonolência e após ela, ressurgir nos braços de Hypnos como um grande hipnólogo, capaz de chamar o germe do câncer às falas, manda-lo às favas de sorte a deixar novamente limpo o corpo infectado. Antes que o conseguisse Dany manda dizer que está curada, Deus justo e poderoso se antecipou aos do Olimpo e ao charlatão que desejo ser, mandando às favas o germe canceroso que insistia em profanar seu corpo indefinidamente.
Saiba a Dany que prossigo na escola de Hpnus, já fui além das lições que ensinam sobre a sua família, principal requisito ao acesso à excelente hipnose. São irmãos do deus Hypnos os igualmente deuses Tânato, deus da morte; Éter, deus do céu; Hespérides, deusa da tarde; Filótes, deus da amizade; Geras, deus da velhice; Momo, deus da alegria e do escárnio; Oizus, deus da miséria; Nêmesis, deusa da vingança; Kera, deus do destino do homem em seus momentos finais; e, Moros, deus do quinhão que cada homem receberá em vida. A próxima e última lição diz respeito à esposa Eufrosina e aos filhos, deuses evidentemente, Morfeu – deus dos sonhos bons ou abstratos; Ícelo – deus dos pesadelos; Fântaso – criador das quimeras e devaneios que aparecem nos sonhos e ficam na memória; e Fantasia, única filha – deusa do delírio.       
A partir daí, caríssima Dany, não mais apenas quanto você, vou chegar ao germe do câncer instalado em outras pessoas também bonitas, dando ordens:
-Brilhe três vezes – brilhando estaria ao meu comando.  
-Saia desse corpo, vá para o Himalaia, quanto mais lhe mande acordar mais hibernará. Quando depois de duzentos anos assim hibernado vá a Oizus, Nêmesis, Tânato e pode também buscar Ícelo, desde que neles permaneça para sempre.
Dada essas instruções, que serão ordens, daria o golpe final: et quod dico.    

terça-feira, abril 05, 2016

LUA CABEÇA DA TERRA

c-bernardo2012@bol.com.br

Cada cabeça um mundo desconhecido a conhecer, quantos lá na China!? Até aprender mandarim.......mas que nada, aparecer com o que estava oculto, mostrar-se, revelar-se, são funções da palavra. Difícil calar-se ao papel em branco com tantos jornais falando da Lava Jato, de um ex presidente quase em fuga e de mais e mais gente delatando. É ler.
Quanto a escrever, elejo a lua - não a dos namorados – mas a cabeça da terra, essa sem a qual os dias e as noites não durariam mais que uma ou duas horas. Titânicos esses mundos em que a atração magnética de um pelo outro explica a pachorra com que giramos no espaço – vinte quatro horas, trezentos e sessenta e cinco dias.
Sempre olhei para a lua, perguntei milhões de vezes o que ela fazia ali que não fosse pela luz noturna, que não fosse pelos namorados, que não fosse pelos poetas...agora sei, mas não foi ela a responder.
Antes, alheia ao que me doía, a lua criou em mim a ansiedade que me afasta do mundo real – aliás, ansiedade e dor são o meu particular vale das sombras. Aí praticamente não raciocino, é quando mais erro se insisto. Shakespeare em Hamlet disse: “Sonhar, aí está o obstáculo”. Disse-o melhor o nosso Mario Quintana: “Sonhar é acordar-se para dentro”.
Mas não são apenas ansiedade e dor, os ícones penosos da minha existência – sou um mundo. Aliás, cada cabeça é um mundo. Agora mesmo ando no mundo dos poetas, especialmente esses virtuais que me oferecem seus poemas ou me lembram letras de poetas imortais. Já disse que durmo pouco, tenho horas e silencio infindos ao meu dispor, em mesma medida que poemas desses meus amigos entram sem parar na tela do face book. Vou com eles noite a dentro, afinal, segundo Jean Cocteau, “poemas são ânforas cheias de silencio”.
Uma cabeça um mundo, logo não há poema ruim. O que há neles que não sejam fragmentos de um mundo que não conhecemos inteiramente? Ou, de outra forma, o que há nesses mundos expresso em poema que não deva propagar-se até a franja pioneira dos outros mundos? Afinal, somos mais de seis bilhões de cabeças.
Houve um tempo, aqui mesmo no Brasil, que uma criação poética saída da cabeça do compositor Noel Rosa só chegaria aqui em Macapá vinte trinta dias depois. Três dias para jornais de São Paulo chegar ao Rio, mais dias para os do Rio de Janeiro alcançar Belo Horizonte. Agora põe-se a virgula e já do outro lado do mundo tem alguém ansioso para ver onde no texto cairá o ponto parágrafo.
Não se deve perder esse tempo de ler e escrever tudo, especialmente os que como eu trocaram a luz da lua pela luz da tela do computador – é no face book onde agora habitam santo e dragão lunares.
Os tempos estão adversos para poetas e escritores, pois, no atacado, as pessoas não gostam de ler. Alvíssaras, criam assim razão para letras e mais letras nas redes sociais, pois aí está a incrível velocidade com que se dá a comunicação. Há o varejo dos que fazem com gosto uso das letras em palavras: cada cabeça um mundo desconhecido a conhecer, aparecer com o que estava oculto, mostrar-se, revelar-se, são funções da palavra.      

sexta-feira, abril 01, 2016

DONA BENTA


c-bernardo2012@bol.com.br 

Sempre mais a dor que o amor leva a gente ao hospital, quando doentes acompanham-nos os parentes e tanto nós quanto eles ali estamos porque dói. Não sei se razão, mas justificativa tem quem não gosta de hospital. Outra vez estive num deles aqui em Macapá e também não gostei nem um pouco de ter ido, mas eu cresço mesmo assim.
Dona Benta está lá, quase em seu leito de morte. Meses atrás, quando o senador Romário esteve aqui quis que ele fosse conhece-la em sua casa, não pelo câncer que a amortecia, mas pela filha Down que tinha sob cuidados com os olhos, com o coração, com os gestos, com as mãos, com a doação que só as mães vocacionadas têm.
O senador mostrou-se interessado em conhece-las, mas não era possível montar o devido aparato de segurança que sua fama de craque mundial de futebol exige ao menor de seus deslocamentos. Não foi, mas soube por mim de sua história.
Fiquei com a Dona Benta enquanto passava os dias, ainda na sexta-feira santa da Paixão de Cristo fui vê-la. Não nos falamos, ela já estava bastante debilitada, esgotada pela luta tenaz contra a doença, mas tinha ainda um corpo em bom aspecto. O que emagrecera os lençóis guardavam aos olhos, mas os braços expostos e espetados de soros e quimioterápicos diziam que ainda tinha massa corporal. Lembro ter chegado em casa e dito no face: "Fui agora a pouco visitar os companheiros e companheiras internadas na Unidade de Oncologia do Hospital Geral, está mal a amiga que especialmente queria abraçar - talvez não mais a veja. Mas deixei a ela uma cruz de São Camilo e pílulas de Frei Galvão...o Senhor pode tudo".
Ontem uma de suas filhas telefonou e me pediu fraldas, mal sabia que assim me dava motivo e força para voltar a ver Dona Benta no hospital.
Ó Deus dos miseráveis, praticamente não é mais Dona Benta quem vi na mesma cama sob lençóis, braços expostos espetados de agulhas, mas com as narinas entupidas de mangueirinhas que trocam oxigênio e gás carbônico para ela, que nem para isso tem forças. Entrei e sai debaixo de chuva do hospital, ora água ora lagrimas.
Hoje faleceu a Dona Benta, outra vez a morte colocou diante de mim a crueldade e a brutalidade, não por si, vez que morrer é mesmo assim, mas pela preciosa utilidade que a mãe Benta tinha para a sua filha Down. Quase nenhuma outra pessoa poderá ter por aquela menina igual compreensão e força protetiva.
Morta sei que está Dona Benta, morreu efetivamente o seu corpo, sem o menor risco de catalepsia. Desde quando a conheci que esse seu corpo vinha morrendo por causa da força destruidora da leucemia. Por amor devíamos ir mais aos hospitais, marcar encontros com tantas Bentas e Bentos alheios que se despedem da vida.