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domingo, abril 10, 2016

UMA SÓ PESSOA.


Na década de 70, por volta do 1978, conheci em Macapá uma mulher muito bonita. No início era de ouvir falar e de vê-la aqui e ali cuidando da sua rotina de dona de casa. Depois, função de suas relações com a minha esposa, passei a uma convivência esparsa e equidistante, período em que conheci também o seu esposo - ela e ele eram bonitos.
Tempos depois tiveram uma filha, pouco vista, a criança ficou para a família e seus íntimos, eu mesmo não me lembro tê-la visto até já grandinha. A menina revelou-se portadora de Síndrome de Down, na época o preconceito batia duro nas crianças portadoras e em suas famílias – nem à escola iam. Já tínhamos a APAE Macapá.
A casa onde moravam era central, dela a correio, a banco, à igreja, a supermercado, à praça, a médico, era um pulo. De muito boa estrutura, ampla, arejada e com amplo jardim frontal, não tinha muros e sim rico gradeado. Muito raramente passando à rua via-se a menina ao quintal, como não era ainda a época dos carros com película escurecendo os vidros aí sim estava ela ao banco traseiro.
Ia a menina crescendo e a mãe, ainda bela mulher, envelhecendo, em cujos cabelos vinham os fios brancos, pintas na pele dorsal das mãos, aos olhos os óculos e roupas antigas mostrando que a vida era outra em mesma mulher.
O marido também envelhecia às pressas, mais raro de ver às ruas mais difícil perceber quanto a vida familiar o modificava. Depois de uns trinta anos que o conhecia, morreu.   
Não imediatamente como que vê-lo morto mãe e filha esperassem, a essas passamos ver e tocar na igreja. Todos os domingos estavam lá para a Missa matinal. A mãe assumiu ares de vida de sacrifícios, traços indesejáveis por todas as mulheres marcavam seu rosto com rugas, sobras de pele balançavam na parte traseira dos braços, as passadas lentas, os cabelos antes produzidos agora apenas penteados cada vez pareciam de prata. Deixava de ser uma mulher bonita nem uma linda mulher, especialmente, aliás não, exclusivamente porque não tinha mais individualidade. Fundiu-se à filha que fundiu-se à mãe, sendo as duas uma só pessoa.
Um dia desses, já depois de quarenta anos, falei à mãe que minha missa com elas por dentro da igreja catedral se transformara numa necessidade de perguntar-me severamente quem sou.!?
Inversamente ao que entendo ou percebo da vida a mãe perdia vigor e massa muscular enquanto a menina já não o era. Ali estava, isso sim, uma vultosa mulher, pesadona, enorme, curiosa e destemida como a mais pura criança.
Hoje é domingo, já tardinha; pela manhã estive com elas. À mãe quase disse que era ainda uma linda mulher, mas não era importante, não significava nada. A menina cismou comigo pela primeira vez, queria saber se eu tinha bombom para lhe dar, não me tocou os bolsos mas não soltava a mão que tomou para si até que respondesse o que queria ouvir.
Domingo que vem trarei, pode cobrar, disse. A mãe apenas comentou: não sabe o que arranjou.    
Não falharei, seria muita mesquinharia diante de um dos viveres mais dignos que em toda minha vida conheci. As duas são uma, mas a mãe não é mais bela...é santa.  




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