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terça-feira, agosto 28, 2018

JOÃO DA MARIA...DO JOÃO

Não lidamos com nomes reais das pessoas mergulhadas no mundo do câncer quando abrimos espaço para terceiros, razão pela qual vou lhes falar da “Maria”. Tenho muita sensibilidade e até inveja do homem que morre de amor pela esposa – na tristeza e na alegria; na riqueza e na pobreza; e, especialmente na dor. Assim é “João” esposo da Maria que faz tratamento de câncer juntamente comigo.
Um dia, quando conheci Maria, vi um quadro humano dilacerador e também bonito. Maria parecia à morte, muito magra, sem cabelos, olhos sem luz, parados. Estava quase inanimada sobre a cama/maca, parecendo já habitar um outro mundo. Para ela a dura realidade daquela sala de quimioterapia parecia não importar mais. João era a mais acabada expressão da dor – era em João que Maria doía. Era muito mais novo do que eu esse João; trinta anos atrás jogávamos futebol juntos: de salão (hoje futsal) quase todos os dias ainda no fim da madrugada e o futebol de campo nos fins de semana. João era craque.
Mas o João na cabeceira do leito de enfermidade de sua amada esposa Maria se apresentava de rosto e cabeça cobertos por espessas camadas de cabelos totalmente brancos. Era o João pleno de dor e tristeza, porém apaixonado da sola dos pés a esses cabelos brancos:
-Essa mulher mesmo doente é muito bonita., se ela morre aí, morro aqui - disse.
Maria estava mal, o corpo médico e paramédico da clinica se movimentava, uma decisão urgente e praticamente única estava para ser tomada.
Eu chorava diante do quadro ali composto por Maria e João, algo do tipo O Retrato de Maria, de Ivon Curi (Acabou-se o dia, acabou-se a noite... Mais uma noite sem Maria. Maria... ahã. Ela é meu amor...agora, é só essa fotografia. Mas fotografia não fala! Fala? Escuta, Maria).
João foi chamado para ouvir os médicos longe dos ouvidos de Maria, concomitantemente abriu-se as duas folhas da porta de vidro, por ali fizeram passar a cama/maca de Maria em direção ao longo corredor, no fim do qual, lá fora, já estava uma ambulância e seu respectivo corpo médico e paramédico próprios para ocasiões urgentes como aquela.
Lá na saída, depois de ver sua Maria embarcada naquele veiculo de dor e esperança, João pareceu me procurar com os olhos, e foi-se.
Maria, naquele mesmo dia, ganhou o aeroporto em busca de radioterapia inexistente no Amapá. Durante meses, quase um ano, nada soube da evolução do quadro clinico de Maria. Falávamos João e eu via redes sociais, mas fechado em si mesmo esse João agora tão mais sofrido não mencionava mais sua linda Maria.
Hoje, 28 de agosto de 2018, estou novamente no mesmo lugar recebendo a 22ª sessão de quimioterapia dessa série prognosticada inicialmente para se concluir com vinte e quatro sessões.
Deus está em todos os lugares e em todas as pessoas, mas se mostra mais visível em nós: cancerosos. Não é que a Maria do João e eu nos vimos juntos outra vez na mesma clinica?
Demorei um pouco para reconhecê-la, porque bela, cor da pele restabelecida, cabelos diferentes e muitos, olhos cheios de nova vida, sorriso nos lábios e muita força nos braços que me envolveram demoradamente num abraço inesquecível.
Deixei dois beijos em suas faces: um pelo João que a ama Maria e não pode viver sem ela; outro pela vida retomada pulsando vigorosamente em suas artérias.  
Vida longa Maria., Deus quer assim.

   


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