Clovis Rossi - Folha de Sao Paulo
Quando
Ronaldo disse estar “envergonhado” com os desacertos da organização da Copa,
Dilma Rousseff reagiu à moda de Nelson Rodrigues: “Tenho certeza que nosso país
fará a Copa das Copas. Tenho certeza da nossa capacidade, tenho certeza do que
fizemos. Tenho orgulho das nossas realizações. Não temos por que nos
envergonhar. Não temos complexo de vira-latas.”
Nesta
quinta-feira, Dilma submeteu seu orgulho a teste na tribuna de honra do
Itaquerão. Dali, assistiu à partida inaugural da Copa do Mundo. Dessa vez,
tentou blindar-se no silêncio. Absteve-se de discursar. Não funcionou. Como
queria a presidente, a torcida exorcizou o vira-latismo. Mas,
desamarrando suas inibições, incorporou um pitbull.
Ao
entoar o hino nacional, ao ovacionar os jogadores, a arquibancada tomou-se de
um patriotismo inatural. Contudo, rosnou com agressividade inaudita ao
dirigir-se a Dilma. Fez isso uma, duas, três, quatro vezes. Diferentemente do
envelope de uma carta ou do e-mail, a vaia não tem nome e endereço. Pode soar
inespecífica. Como no instante em que o serviço de som anunciou os nomes de
Dilma e de Joseph Blatter.
Até
aí, poder-se-ia alegar que o destinatário da hostilidade era o cacique da Fifa,
não Dilma. A coreografia estimulava a versão. Blatter levantou-se. Dilma
manteve-se sentada. O diabo é que o torcedor, salivando de raiva, tratou de dar
nome aos bois. Foi assim no coro entoado nas pegadas da cerimônia de abertura
da Copa.
“Ei,
Dilma, vai tomar no c…'', rosnava um pedaço da multidão. “Ei, Fifa, vai tomar
no c…”, gania outra ala. Quando Dilma foi exibida no telão do estádio vibrando
com o segundo gol do Brasil, arrostou, solitariamente, uma segunda onda de
xingamentos. Após a comemoração do terceiro gol, ela ouviu um derradeiro urro:
‘Ei, Dilma, etc…”
O
que fizeram com Dilma Rousseff no Itaquerão foi indesculpável. Vamos e
venhamos: ela não era nem culpada de estar ali. Com as vaias da Copa das
Confederações ainda não cicatrizadas, Dilma teria ficado no Palácio da Alvorada
se pudesse. Foi ao alçapão do Corinthians porque o protocolo a escalou.
Vaiar
autoridade em estádio é parte do espetáculo. Numa arena futebolística, dizia o
mesmo Nelson Rodrigues, vaia-se até minuto de silêncio. Porém, ao evoluir do
apupo para o palavrão, a classe média presente ao Itaquerão exorbitou. Mais do que
uma pose momentânea, o presidente da República é uma faixa. Xingá-la significa
ofender a instituição.
Quando
o xingamento é transmitido em rede mundial, adquire uma pungência hedionda. No
limite, o que a torcida fez na tarde desta quinta-feira foi informar ao planeta
que o Brasil está deixando de ter uma noção qualquer de civilidade.
Quando
o fenômeno atinge uma platéia como a do Itaquerão, com grana para pagar os
ingressos escorchantes da Fifa, a deterioração roça as fronteiras do paroxismo.
Evaporam-se os últimos vestígios de institucionalidade.
A
sociedade tem os seus abismos, que convém não mexer nem açular. Dilma não se
deu conta disso. E vive a cutucar os demônios que o brasileiro traz enterrados
na alma. Fez isso pela penúltima vez no pronunciamento levado ao ar na noite da
véspera. Muita gente achava que ela merecia uma reprimenda sonora. Mas a
humilhação do xingamento transpassou a figura da presidente, atingindo a
própria Presidência.
Quem
deseja impor a Dilma um castigo que vá além da vaia, tem à disposição um
instrumento bem mais eficaz do que a língua. Basta acionar, no silêncio
solitário da cabine de votação, o dedo indicador. O gesto é simples. Mas a pata
de um pitbull não é capaz de executá-lo.
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