João Ubaldo Ribeiro (06/06/2011)

Suspeita-se
na ilha que a propalada operação de safena a que se submeteu recentemente
Zecamunista foi na verdade um implante criado pela diabólica medicina da União
Soviética, que, quando não mata, como foi o caso de Zeca, injeta tamanha dose
de energia no indivíduo que ele sozinho vale por todo um Politburo, coisa braba
mesmo, do tempo do camarada Stalin Marvadeza e da NKVD. Não sei se os rumores
procedem, mas de fato Zeca, exibindo a cicatriz do peito por trás de uma
correntinha com uma foice e um martelo e umas contas de Xangô (quando uma vez
eu perguntei a ele que mistura era essa, ele me deu um sorriso de desdém e
respondeu apenas que não era materialista vulgar), está mais elétrico do que
nunca. Na hora em que o peguei, ele ainda recebia abraços e apertos de mão pela
palestra que acabara de fazer no bar de Espanha, esclarecendo a todos sobre o
sistema político brasileiro. Infelizmente, perdi a palestra, mas ele, muito
modestamente, me disse que não tinha sido nada de mais.
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Foi o bê-á-bá – disse ele. – Comecei pela questão da soberania.
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Ah, sim, a soberania popular. Todo poder emana do povo, etc., isso é muito
bonito.
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Bonito pode até ser, mas não é verdade. Foi isso que eu disse a eles. Expliquei
que soberania é o direito de fazer qualquer coisa sem dar satisfação a ninguém.
E quem é que aqui tem o direito de fazer o que quiser, sem dar satisfação a
ninguém, é o povo? Claro que não. É, por exemplo, o deputado, que se cobre de
todos os tipos de privilégios e mordomias, se trata melhor do que o coronel
Lindauro tratava as mucamas e, quando alguém reclama, ele manda esse alguém se
catar, isso quando dá ousadia de responder, porque geralmente não dá. Todos
eles fazem o que querem e não têm que prestar contas, a não ser lá entre eles
mesmos, para ver se algum não está levando mais do que outro, nisso eles são
muito conscienciosos. Fiz que nem Marx, botei a história de cabeça para baixo.
Não foi o rei Luís XIV que disse que o Estado era ele? Pois aqui não, aqui o
Estado é o governo, é grana demais para um rei só, tem que dar para todos os
governantes, cada um com seu quinhão. O Estado são eles e é deles, tem que
meter isso na cabeça e parar de pensar besteira. Antes de qualquer postura
abestalhada, vamos encarar a realidade objetivamente, não tem nada de povo,
povo não é nada, tem mais é que botar o povo pra comprar bagulho sem entrada e
sem juros e cuidar do que interessa ao País.
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E o que é que interessa ao País?
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Ô inteligência rara, o que interessa ao País é o que interessa a eles. Que
todos eles continuem se locupletando numa boa, não tem nada que mexer em time
que está ganhando. Você viu isso muito claramente no caso do Palocci, não viu?
Não se mexe em time que está ganhando.
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Que caso do Palocci, o caso do caseiro?
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Que caso do caseiro, cara, deixe de ser leso, o caso do caseiro já entrou para
as piadas de salão do PT. Estou falando no caso do dinheiro que dizem que ele
ganhou por cultivar bons contatos. Você viu, pegou mal, ficou aquele mal-estar
e aí o que é que aconteceu? Exatamente isso que você vai dizer, mas deixe que
eu digo. Aconteceu que era mais um trabalho para o Super-Lula! Eu vou ter que
dar a mão à palmatória, o bicho não é inteligente, não, ele é um gênio, gênio.
Você viu como, com dois beliscões aqui e três cascudos ali, ele enquadrou todo
mundo e tudo entrou nos eixos? Mas, ainda mais que isso, muito mais que isso,
ele fez a reforma política! Ele fez a reforma política e, como se diz nas
operações policiais, sem disparar um único tiro!
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Pode me chamar de leso outra vez, porque não entendi que reforma.
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O bipresidencialismo! Dois presidentes, em lugar de um só! E isso sem precisar
mudar nada na Constituição, já está aí, já está em operação, não é preciso
alterar lei nenhuma, esse cara é um gênio mesmo. É por isso que ela faz tanta
questão de ser chamada de presidenta, eles já deviam ter combinado isso desde o
comecinho da campanha eleitoral. Presidente é ele, presidenta é ela. Governante
é ele, governanta é ela. O entrosamento é perfeito. Ele não suporta trabalhar e
aí o trabalho todo de despachar, ler, discutir, assinar etc., ela faz. Das
jogadas políticas, dos discursos, das viagens e das mensagens na TV ele cuida.
E de mandar sancionar ou vetar o que for necessário, claro. Fica perfeito, como
com o casal que não briga pelo pão porque um só gosta do miolo e o outro da
casca. Ele criou – e ainda por cima com os votos do otariado todo – o
bipresidencialismo, que já veio com ele de fábrica, ele é um gênio!
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E você acha que isso vai funcionar mesmo?
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Já está funcionando. Trouxa será aquele que, querendo coisa graúda do governo,
não vá falar com ele primeiro. E mais trouxa será quem o contrariar. Caso
perfeito para quem acha que não se mexe em time que está ganhando. Não mudou
nada, tudo continua na mesma, só que agora o presidente não apenas conta com
uma supergovernanta para cuidar do trabalho chato, como continua mandando, e
ainda com a vantagem de ter alguém para levar a culpa, se alguma coisa der
errado, pois, como diziam os antigos, a vitória tem muitos pais, mas a derrota
é órfã, quem mais sabe disso é ele.
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Zeca, você realmente está muito inspirado hoje. Esse bipresencialismo que você
sacou está muito bem pensado, ele continua mandando mesmo e deixando isso bem
claro. Mas eu me lembro de você dizendo, antes da eleição, que, se ela ganhasse,
em pouco tempo nem mais o cumprimentaria.
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Bem, eu subestimei a governantabilidade dela. E, além disso, beija-mão não é
bem um cumprimento.