O
neurocientista Miguel Nicolelis desenvolve uma teoria para explicar a
genialidade de Pelé em campo

Miguel
Nicolelis / Crédito:
Miguel
Nicolelis (São Paulo, SP, 1961), codiretor do Centro de Neuroengenharia da
Universidade de Duke, nos EUA, trabalha para permitir que um tetraplégico dê o
pontapé inicial na Copa de 2014. É palmeirense roxo.
"O homem cujo pé era uma bola"
A partir do fim dos anos 60, seguindo os conselhos do
mais fanático palmeirense que eu conheci, o inesquecível Tio Dema, o futebol
passou a ocupar uma parte essencial da minha vida. Ao longo dessas décadas
dedicadas à profissão de torcedor fissurado, muitos momentos também
inesquecíveis, passados nas arquibancadas de estádios pelo mundo afora ou à
frente de uma TV (ou computador, nos últimos anos), marcaram também minha
carreira de cientista.
Quando, no ano 2000, o editor da revista científica
inglesa Nature pediu que eu iniciasse um
artigo com alguma descrição que instigasse a imaginação dos leitores sobre as
maravilhas que o cérebro humano é capaz de realizar, não hesitei um
milissegundo. No primeiro parágrafo daquele que se tornou um dos meus artigos
mais citados na literatura neurocientífica, narrei, em muitos detalhes, a
jogada que originou o primeiro gol da seleção brasileira contra a Itália na
final da Copa do Mundo de 1970, no México.
Numa outra ocasião, durante a abertura de uma palestra no
Instituto Max Planck, na cidade alemã de Tübingen, três dias depois da vitória
da seleção canarinho na Copa do Mundo de 2002, na Coreia do Sul e no Japão,
simplesmente não pude me conter mais uma vez. Contrariando o apelo aflito do
meu filho mais velho, presente na plateia, não tive dúvida em abrir minha aula,
num auditório lotado de neurocientistas alemães sisudos, com uma imagem
mostrando o esforço em vão do goleiro alemão Oliver Kahn, tentando se esticar
todo para impedir mais um gol do fulminante ataque brasileiro. O título do
slide era: I Kahn’t get it! Para minha total surpresa, assim que a imagem foi
projetada, toda a plateia germânica veio abaixo — no bom sentido — e muitos
desses colegas, até hoje, se lembram daquela provocação com bom humor.
Entre todas as histórias e emoções desfrutadas nessa
minha carreira paralela de torcedor profissional, poucas se comparam ao
privilégio de poder testemunhar, sempre ao lado do querido Tio Dema, em tardes
passadas nas arquibancadas do antigo Parque Antártica ou no charmoso Estádio
Municipal do Pacaembu, os embates épicos entre as várias Academias palmeirenses
e o Santos de Pelé, disparado o melhor jogador de futebol de todos os tempos,
pelo menos deste lado da Via Láctea.
Embora todos os clássicos do então glamouroso Campeonato
Paulista fossem eventos esperados com grande antecipação, nada se comparava, ao
menos para mim, à expectativa de estar presente num jogo em que o Rei do
Futebol desfilaria pelo gramado, perseguido por todos os cantos pelo
infatigável Dudu, tentando, a cada momento, superar em elegância e eficiência o
também extraterrestre Ademir “Divino” da Guia.
Apesar de ser palmeirense até a última célula do corpo e
torcer em cada jogo desesperadamente pela vitória do esquadrão alviverde, havia
algo muito especial em visualizar aquela libertação de ferocidade e destreza
motora que o furacão cinemático chamado Pelé realizava ao longo de um prélio.
Enquanto antes da partida ele até parecia uma pessoa comum, dando entrevistas
no gramado, bastava que o apito inicial soasse para que todos no estádio
entendessem instantaneamente por que aquele homem fora apelidado com o nome de
um vulcão do Caribe.
Erupção de dribles,
arrancadas e gingas
Anos depois, provavelmente devido à incomparável
popularidade adquirida pelo número 10 santista em todo o sistema solar, o mesmo
nome, Pelé, seria dado ao acidente geográfico mais exuberante da lua de Júpiter
chamada Io. Nos campos de Io, Pelé até hoje pode ser claramente identificado
como uma erupção vulcânica contínua, de alta velocidade, que espalha lava e
fumaça, sem cessar, por mais de 300 quilômetros ao seu redor, definindo o ponto
mais atraente daquele satélite. Sem tirar nem pôr, esse era o efeito do Pelé
terrestre. Uma erupção contínua de movimentos, de dribles, arrancadas, gingas e,
sobretudo, de chutes mortais, com cada uma ou ambas as pernas; no chão ou no
ar, de pé ou de cabeça para baixo, bem no meio de uma de suas bicicletas que
desafiavam a gravidade e faziam todo um estádio ficar sem ar.
O desejo de marcar gols era tão obsessivo e compulsivo
nesse vulcão brasileiro que tudo o que as leis da física permitem Pelé realizou
para chegar ao objetivo; até tabelar com as pernas dos adversários. Revendo
filmes daqueles tempos, é assombroso confirmar as inúmeras vezes que Pelé, não
tendo alternativa, em vez de desistir ou passar a bola, achava uma forma de
recrutar seus marcadores para que esses, involuntariamente, o ajudassem a abrir
um caminho rumo ao gol. Não é exagero especular que, se houvesse um prêmio de
melhor jogador do mundo naquela época, Pelé o teria ganho, ininterruptamente,
de 1958 a 1973. E não me venham com Messi ou Maradona. Como Pelé não houve, não
há e jamais existirá. Quem viveu e viu sabe. Ponto final.
De todos os malabarismos e desafios à lógica que eu
presenciei Pelé fazer em campo, a característica que mais me marcou foi
verificar, jogo após jogo, como a bola parecia, sem hesitação, grudar em seus
pés e, dali para a frente, se recusar a se separar daquele que a tratava como
ninguém mais era capaz. Curiosamente, anos depois, um dia eu deparei com uma
gravação realizada pela rádio inglesa BBC durante um amistoso Brasil x
Inglaterra, disputado no Maracanã, em 30 de maio de 1964. Durante aquele
verdadeiro massacre futebolístico (5 x 1) imposto pelos então bicampeões mundiais
aos futuros campeões do mundo, o lance do primeiro gol brasileiro desnorteou o
locutor da BBC a ponto de levá-lo a dizer que Pelé realmente não devia ser
deste universo. Nesse lance, depois de driblar vários ingleses, Pelé tenta o
chute ao gol. Caprichosamente, a bola bate num defensor e retorna. Para onde?
Ora, para o mesmo pé de Pelé, que, imediatamente, para desespero do locutor
britânico, coloca Rinaldo (então ponta-esquerda do Palmeiras) na cara do gol.
Mais tarde, Pelé daria outro passe de gênio para que o ícone alviverde Julinho
Botelho marcasse mais um gol para o Brasil. Segundo o locutor da BBC, todas
essas jogadas fenomenais refletiam o fato inegável de que “a bola não larga do
pé de Pelé simplesmente porque ela faz parte dele!”
Objetos como extensão do
corpo
Meio
século depois daquele jogo histórico, em todas as minhas palestras pelo mundo
afora, é esse o exemplo que uso para descrever como nosso cérebro de primata
assimila todas as ferramentas que cada um de nós utiliza no cotidiano — nossos
carros, nossos telefones, nossas roupas, raquetes, bolas etc. — como uma
verdadeira extensão do nosso corpo biológico. Levado ao limite da sua
capacidade de assimilação, nosso cérebro permite que alguns de nós atinjamos
graus impressionantes de proficiência no manuseio de ferramentas artificiais e
objetos inanimados. Muito provavelmente é dessa voracidade cerebral em
assimilar tudo ao seu redor que emergem os exímios violinistas, pianistas e
também os craques de futebol, esses heróis populares que nos permitem manter
por toda uma vida, ainda que tenuamente, laços quase imemoriais com nossa
infância e juventude.
É
por isso que, ao terminar minhas palestras, sempre gosto de frisar que, se um
dia alguém tivesse o privilégio de mapear o cérebro desse vulcão de duas pernas
chamado Pelé, esse alguém encontraria, na região do lobo parietal, não apenas a
representação de um pé — mas, sim, a imagem de uma verdadeira fusão desse com
aquela que foi sua mais fiel e amada companheira: a bola!
=> c-bernardo2012@bol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário