Translate

quinta-feira, abril 19, 2012

O PASSADO





LATAS DE PAPELÃO.

José Rafael existiu em Volta Grande e também em minha vida. Longos anos nos aproximaram de forma inesquecível, ainda hoje posso descrevê-lo: um homem miúdo, fala mansa, portador de deficiência congênita em uma das pernas- a direita, descalço, sem óculos, cabelo aparado,  roupas rigorosamente limpas, passadas, engomadas em dias especiais. Usava uma muleta e não duas. Gostava muito do jogo do bicho, bebia uma pinguinha vez por outra, fumava o cigarro de enrolar (assim dizíamos do fumo desfiado e do papel de seda, próprios para a feitura manual do cigarro - porronca aqui no o norte). Dois detalhes: depois que colocava o cigarro na boca não o tirava mais, até queimar o beiço; nunca falava de religião, menos ainda qual lhe servia mais.
O trabalho e a deliciosa facilidade que Rafael tinha de contar causos nos colocavam lado a lado. Também era uma pessoa confiável. Era um homem inteligente.
Compreendo hoje que foi ele um ótimo empreendedor, um astuto empresário que apesar do semi analfabetismo e da deficiencia fisica soube sobreviver sem se pendurar no serviço publico: um costume de época.
Vivia dos serviços de limpeza de quintais. Fazia o que podia e “terceirizava” o que não podia ao ajudante.Mas isso era “bico”.
Sua ocupação principal era a de quebrador de pedras. Estranho, não? Hoje sim; ontem consistia em mão de obra muito valorizada - não respeitada.     
Nenhum prédio podia prescindir da brita na massa de cimento do alicerce e da laje, principalmente. Não era tempo de brita industrial. Pedras amontoadas era sinal de prédio novo., uma espécie de senha: vem aí um novo prédio.
Zé Rafael se antecipava, contratava o serviço e nos chamava a executá-lo.
Era uma diversão: ganhávamos um troco, estávamos na rua e não trancafiados em casa, sabíamos de todos os acontecimentos na cidade, riamos à vontade com os causos do Zé Rafael.
A maior dessas empreitadas foi a construção do prédio para o hospital maternidade. Transformamos montanhas de pedras em brita e pó de brita: subproduto valioso na construção civil. A unidade de medida era a lata (lembro o leite americano Aliança para o Progresso) de vinte litros.
 A "latinha" hoje é feita de plástico
De repente a brita industrial chegou nos “desempregando”. José Rafael foi para o ramo do ferro velho: comprar e revender.
Ferro velho por assim dizer. Valia tudo: cobre, zinco, alumínio, chumbo, estanho... metais.
Continuamos gravitando em volta dele, embora pudéssemos vender ovos ao S. Aurélio e ao Sr. Clecildo, padeiros. Não criávamos galinhas poedeiras, mas...  
Estava tudo mais fácil, mais rentável,mais rápido. Rafael nos ensinava bons costumes, não nos deixava faltar à escola. Era bom homem, bom agregador.
Um dia quis enganá-lo e me dei muito mal. Juntei metais até fazer bom volume e no meio disso coloquei varias “latinhas” de embalagem de Pó Royal: muito bem amassadas, quase compactadas. Não sei mais onde as consegui.
Não se usava saco plástico, o papel dominava do açougue à sacristia. Empacotei tudo. Levei à ele para pesar. Ele viu as “latinhas” em meio aos metais. Percebeu a “esperteza”. Anunciou o resultado da pesagem, mas despachou-me dizendo que pagaria mais tarde.
Astuto Zé Rafael! Queria que lhe desse um mote para com ele reclamar ao papai da minha desonestidade. Está me devendo o dinheiro até hoje, não o vale quanto pesa (papelão encharcado não tinha valor algum).
Onde errei? A “latinha” de embalagem de pó Royal era 90% feita de papelão. Tinha três equenos aros de lata: o fundo, a coroa e a tampa.

Nenhum comentário: